quinta-feira, 31 de maio de 2007

Egar Rice Burroughs, autor de Tarzan dos Macacos












Desde o dia em que nasceu, 1 de setembro de 1875, em Chicago, até àquele em que ofereceu a sua primeira história a All-Story Magazine, em 1911, Edgard Rice Burroughs fracassou em quase tudo o que tentou. Freqüentou meia duzia de escolas públicas e particulares antes de se formar na Academia Militar de Michigan. Não tendo conseguido designação para um posto em nenhuma unidade militar - nem mesmo no exército chinês - acabou sentando praça no Sétimo Batalhão de Cavalaria dos Estados Unidos. Mas, ao dar baixa, continuava sendo praça. Uma sucessão de dezoito empregos diferentes e tentativa comerciais se seguiram ao seu casamento em 1900, com Emma Centennia Hulbert - e, em 1911, teve que empenhar o relógio a fim de comprar comida para a família.Tendo passado quase toda a vida a rabiscar, esboçar e escrever versos para se divertir, ERB decidiu, neste ponto baixo da vida, quase passando fome, ver se o público receberia tão bem os seus vôos de imaginação, como os recebiam os seus amigos e a sua familia.

Sua primeira história - escrita no verso de folhas de papel timbrado de empresas falidas pois não tinha dinheiro para comprar papel de qualidade - lhe trouxe quatrocentos dólares. Hoje, aquela história, "Uma Princesa de Marte", é aclamada como um ponto de partida para a ficção-cientifica do século XX.A seguir, ERB escreveu um romance histórico. Foi rejeitado. Novamente sem vintém, quase desistiu. Mas uma carta de apenas uma linha, que lhe escreveram os editores, lhe deu ânimo para continuar: "Coragem - não desista!". A próxima história decidiria o seu futuro. Foi Tarzan dos Macacos.Tarzan dos Macacos demonstrou ser um êxito espantoso desde o instante em que apareceu em All-Story Magazine, em 1912, mas trouxe para ERB apenas setecentos dólares. E, como a história tinha surgido inicialmente numa revista popular, foi rejeitada por quase todos os principais editores de livros no país. Entretanto, quando Tarzan dos Macacos foi editado em livro, finalmente, por A.C. McClurg & Company, tornou-se o best-seller de 1914.

Uma torrente de romances vieram a seguir: histórias a respeito do planeta Vênus, histórias sobre os índios apaches, contos de faroeste, comentários sociais, histórias policiais, contos passados na Lua e no centro da Terra. Apareceram mais e mais livros de Tarzan. Finalmente, quase cem livros saíram de autoria de ERB, que se gaba de "não ter a mínima idéia de como se escrevia uma história".
Em 1918, Tarzan chegou à tela. "Tarzan dos Macacos", com Elmo Lincoln no papel principal, foi o primeiro filme da História a obter uma renda bruta de mais de um milhão de dólares. Desde então, produziram-se trinta e nove filmes de Tarzan, cada um deles com grande êxito financeiro. Embora gostasse de caçoar das películas, ERB ficou amargamente desapontado com os filmes de Tarzan. Muitas vezes nem ia vê-los. O seu Tarzan era um homem supremamente inteligente, sensível, verdadeiramente civilizado; heróico, belo e, acima de tudo, livre. O mundo conhece bem a caricatura semi-analfabeta que Hollywood fez de Tarzan.

Em 1919, com sua segurança financeira assegurada, ERB comprou a propriedade do General Harrison Gray Otis, na California, de cerca de duzentos hectares, dando-lhe o nome de "Fazenda Tarzana". Ali, escreveu prodigiosamente e dirigia a empresa de âmbito mundial que é hoje Edgar Rice Burroughs, Inc. Em 1941, apresentou-se como voluntário para ser correspondente de guerra e, finalmente, voltou do Pacífico Sul para casa - na qualidade de o mais idoso correspondente norte-americano - somente após ter sofrido uma série de ataques do coração.Passou o resto de seus anos como semi-inválido, numa casa modesta na Avenida Zelzah, em Encino, na California, onde pousou a pena pela última vez aos 19 de março de 1950. As suas cinzas foram levadas de volta a Tarzana, onde, de acordo com seu próprio desejo, repousam em túmulo sem marca.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Jean Genet, o mensageiro do Inferno




Jean Genet, o poeta ladrão, explica seus crimes pela poesia

A Praça da Bastilha, em Paris, é uma atração fatal para os criminosos...como o cemitério de Pantin, onde os "gangsters" costumam enterrar-se mutuamente, depois dos ajustes de contas, nas tardes de chuva. Através da porta de vidro de um café miserável, Jean Genet olhava os paralelepípedos esbranquiçados pela neve. Havia ali o traçado dos antigos muros da prisão de Voltaire e do Máscara de Ferro. Adiante, os carrosséis de um parque de diversões e as árvores esqueléticas de um bulevar justificava a pintura eriçada de Bernard Buffet. Genet começou a falar:
- Há quem me considere esnobe porque freqüento tais lugares. Dizem os jornais que Jean Anouilh, na sua última peça, l’Hurluberlu, enumera um poeta pederasta e ladrão entre as atrações do society parisiense, como se eu fosse um dos males da República. Pensando assim, os juízes já me botaram dezoito vezes na cadeia. Essa gente me faz rir. Que é que você me toma?
Um vagabundo alcoolizado rodava em torno de si mesmo, na calçada fronteira, como se tivesse perdido algo e procurasse. O olhar cinzento de Genet pousou no homem:

- Meu verdadeiro “habitat” é aqui. Fora dele, feneço como uma rosa cortada. Os criminosos constituem um universo proibido, no qual as virtudes proverbiais perdem o sentido. O ar que os criminosos respiram é nauseabundo: cheira a sangue e a sexo. Ora, possuindo condições incontroláveis de erotismo, mergulhei no mal com a alma limpa. Fora do crime, não existo. Dentro dele, justifico-me. É neste café que costumo rever os amigos saídos da cadeia. Eles me contam as novidades da prisão, os potins do nosso mundo concentracionário. Se você tivesse chegado um pouco antes, teria conhecido Minosa e Divine, duas camélias do meu jardim. Ambos acabam de cumprir oito meses na Santé, por causa de um roubo. Contaram-me que Gaby, o sátiro do Bois de Boulogne, perdeu a linha diante da guilhotina. Eu sabia que Gaby acabaria decepcionado. Detesto os criminosos covardes, os inconscientes. Mas, enfim, há quanto tempo não nos víamos?

Havia anos que não nos encontrávamos. Talvez desde 1954, quando conhecemos, por acaso William Faulkner, numa saída do metrô. Em Paris, os amigos podem trafegar a vida inteira sem se encontrarem.

- Mas você tem recebido os meus livros? Ainda bem: não perco a esperança de ser traduzido e conhecido no Brasil. Vocês continuam refratários à minha literatura?

Nesse meio tempo, a fama de Genet atravessou a Mancha e o Atlântico, instalando-se confortavelmente em Greenwich-Village, o bairro latino de Nova Iorque. Em Londes, o pessoal de Mayfair criou um teatro íntimo para encenar a última peça do poeta. Mas Paris não teve coragem de montá-la: o Chefe de Polícia alegou que poderia haver distúrbios.

- Nós, os latinos, somos deliciosamente hipócritas. Em todo caso, editam-me aqui, o que já é uma grande concessão ao espírito e à inteligência.

O primeiro livro de Genet, “Pompas Fúnebres”, foi publicado clandestinamente, em 1948, por um editor corajoso.O poeta ainda se encontrava na prisão, cumprindo pena de cinco anos. Tratava-se de um romance sorbre a ocupação da França pelos alemães, mas seus personagens eram invertidos sexuais. Jean Cocteau, Jean Paul Sartre e Albert Camus, impressionados com o talento do autor, solicitaram para ele o perdão do Presidente da República, Vincente Auriol. A ficha de Genet dizia: “furto com violência” e “atentado ao pudor”. Libertado, publicou dois outros livros , escritos na prisão: “Notre Dame dês Fleurs”, novela poética de um submundo social, e “Haute Surveillance”, peça teatral logo encenada com escândalo no Teatro dês Mathurins. Então, Genet começou a sentir as conseqüências mundanas do sucesso literário: os círculos elegantes de Paris disputavam sua presença. A pintora Leonor Fini transformou-o numa atração para o seu apartamento. Os Anchorena, da Argentina, incluíam-no nos seus jantares do Bois do Boulogne, Jacques Fath hospedou-se quinze dias no seu castelo.

- Expunham-me como um animal raro do jardim zoológico. Mas a minha passividade durou pouco. A destruição do presidiário que havia em mim doía-me como se fosse um castigo do castigo. Libertando-me, operavam-me da infância, acordavam-me antes do tempo.

NA ESPANHA, TORNOU-SE UM “PERCEVEJO CONSCIENTE”


Jean Genet retornou ao crime, mas evitando uma volta à cadeia. Suas artes, ele as exercia contra os editores, vendendo três ou quatro vezes os direitos de publicação de um dos seus livros, ou contra as famílias que o convidavam, furtando-lhes objetos preciosos.

- Quanto ao resto, o ambiente era favorável: há mais vício na alta sociedade do que em Pigalle ou em Montparnasse. Monsieur Anouilh pode falar: é o seu direito. Mas fala por despeito.

Quando o editor Gallimard publicou, há alguns anos atrás, as obras completas de Genet, compreendendo seis volumes, pediu um prefácio a Jean-Paul Sartre. O filósofo existencialista entuasiasmou-se e escreveu seiscentas páginas datilografadas. O católico François Mauriac qualificou-os de “autores escatológicos”. Um Ministro do Interior quis mandar retirar a edição do mercado, mas não chegou a fazê-lo.

- Sempre tive paciência com a Polícia. Nós nos entendemos: nada se parece mais com um criminoso do que um policia. Somos irmãos: em nossas veias corre a mesma sede de sangue e de violência. Nunca me diverti tanto como uma vez em Nice, no Comissariado onde me detinham. Dormia comigo um polícia, belo, forte e confiante. Furtei-lhe cem francos, durante a noite. Na manhã seguinte, o rapaz procurava o dinheiro por toda parte, nos lugares mais estranhos. Você já viu a cara de um roubado? Cara de roubado dá a impressão de que ele está com cólicas. Fingindo ignorância, eu dizia ao rapaz: vai lá no fundo e te alivia, acho que estás doente. Essa reflexão me salvou de mim mesmo e fiquei com o dinheiro.
Quantos anos Genet terá vivido do roubo? Com a cabeça nua oculta na gola da gabardine, ele olhava de novo para a praça da Bastilha. Um rapaz jogava tac-tac no café e a campainha da máquina soava a cada momento.

- Não sou um revoltado contra a sociedade, mas estou odiando esse rapaz com essa máquina. Adotei o crime aos 22 anos, por indolência. Eu acabara de sair de um orfanato, onde me educaram. Quando digo educaram, falo sério. Ensinaram-me o latim, o grego, a filosofia e a pederastia. Continuo fiel a todas essas matérias, mas o roubo foi idéia minha, uma facilidade excitante. Estávamos em 1932 e tive de fugir para a Espanha, onde continuei roubando. Vivi, nas ruas de Barcelona, Madri, Cádiz e Gilbratar, os mais belos momentos da minha vida. Nessa época, a Espanha estava coberta de vermes: os seus mendigos. Eles andavam de povoado em povoado, na Andaluzia porque tinha sol, na Catalunha porque era rica e em Madri por causa do vício. Tornei-me, pois, um percevejo consciente. Às vezes, dormíamos seis numa cama só. Porque o criminoso profissional não dorme ao relento; sempre encontra um canto onde se aninhar.

PARA ELE O BRASIL ERA UMA ILHA D’ALÉM MAR E D’ALÉM SOL

Da Espanha, Genet voltou à França, com os republicanos derrotados por Franco, sendo internado por poucos dias num campo de concentração próximo de Bayonne.

- A polícia francesa retirou-me do campo para trancafiar-me na cadeia, eu tinha condenação de dois anos. Antes de chegar a Paris, consegui escapar de meus guardas e corri a Europa, na direção de Praga. Então, o aparelho militar alemão começou a funcionar e, com ele, a espionagem. Na companhia de um amigo espanhol, chamado Saliciano, furtei os segredos militares de um coronel iuguslavo sediado em Praga. Mas a quem vender tais segredos? À Alemanha? À Itália? Acabamos jogando fora os papéis. Saliciano me dizia que, se insistíssemos na espionagem, correríamos o risco de escapar à abjeção em que vivíamos. A espionagem é um processo do qual os Estados sentem tanta vergonha que procuram enobrecê-lo para justificá-lo. Dessa nobreza, fui beneficiado.

Voltando mais uma vez à França, nas vésperas da guerra, Genet encontrou o país mobilizado:

- Tratatava-se de vestir uma farda e de ir dormir dentro da linha Maginot, que os alemães souberam contornar: em seis meses de guerra, não demos nenhum tiro. Desmobilizado por Petain, caí na prisão imediatamente. Foi quando escrevi “Lê Journal d’Um Voleur” (Diário de um ladrão). A prisão obrigou-me a debruçar-me sobre o papel em branco. Só os que não vivem podem escrever. A idéia de uma obra literária me faria dar de ombros. Eu preferia viver. Mas, durante a ocupação, as prisões eram horrorosas. Não havia, sequer, a possibilidade de contato humano. Na solidão de minha cela, o mundo era uma torrente, um rio de forças unidas que me conduziam ao mar da morte. Tentando viver, comecei revivendo meus dias gloriosos de libertinagem. Era uma forma de dar voz ao que emudecera. Veja: naqueles dias, eu pensava muito no Brasil, sonhava com o Brasil, e, na minha idéia, o Brasil era uma ilha d’além mar e d’além sol, onde os homens, atléticos, de fisionomias gastas, acocoravam-se em torno de fogueiras, para descascar, em serpentinas, laranjas enormes, como os antigos imperadores romanos nas gravuras.

Tentando explicar Jean Genet, o filósofo Jean-Paul Sartre escreveu: “A Poesia de Genet não é arte literária, é um meio de salvação. Na maioria das vezes, seus poemas se reduzem a uma palavra e não destinam ao público: é uma maneira de viver. Magnificando a abjeção para poder suportá-la, Genet endereça seus poemas a uma ausência divina. Saberá, ao menos, que é poeta? Não sabe. Mas reconhece que se defende da morte. Criança abandonada, foge à sua maldição original e busca seu próprio ser.” Eu preferiria Apolinaire:

“O vicio em tudo isso
não passa de ilusão
que somente enganar
às almas vulgares.”


Justino Martins para a Revista Manchete numero 360, de 14/03/1959.