quinta-feira, 8 de março de 2007

Guy de Maupassant

Henri-René-Albert-Guy de Maupassant nasceu a 5 de agosto de 1850, no castelo de Miromesnil, a oito quilômetros de Dieppe. Sua família se estabelecera na Normandia desde meados do século XVIII. Foi ali que Maupassant se criou e viveu toda a sua infância e primeira juventude, a principio no litoral, depois no interior da região. "A vagabundagem desses primeiros anos - diz um de seus biógrafos - lhe valeu uma saúde robusta, o gosto do espaço e do ar livre, um perfeito conhecimento dos homens e das coisas que deveria pintar de preferência".

Tinha vinte anos quando deflagrou a guerra franco-prussiana. Alistou-se e fez toda a campanha. Aí também se envolve de perto nos acontecimentos que mais tarde poria em cena. Parte depois para Paris e emprega-se no Ministério da Marinha, de onde passará mais tarde para o da Instrução Pública. Desse mundo do funcionalismo encontram-se igualmente, nas suas obras, numerosas recordações.

Esse período de dez anos (1870-1880) é o período praparatório do escritor. Divide os seus lazeres entre as regatas no Sena e os seus primeiros ensaios literários: teatro, poesia, novelas. Mas todo esse longo trabalho, ele o conserva em segredo. Durante esses dez anos, apenas publicou duas ou tres breves narrativas e meia duzia de poemas. Pode-se dizer que Flaubert é nesta época a única pessoa que sabe da secreta atividade literária de Maupassant. Ele assiste com orgulho à ecolosão do talento de Guy, aconselhando-o e animando-o com incansável paciência. Flaubert, na sua mocidade, fôra amigo íntimo de Alfred de Poittevin, tio materno de Maupssant, e transportou para o sobrinho a afeição e interessa que dedicava ao tio. Sua influência foi decisiva. Maupassant, com as suas qualidades próprias figura na história literária como o descendente direto de Flaubert. É o escritor realista por excelência e universalmente considerado como o fixador da forma clássica do conto.

Seu primeiro volume Des Vers, publicado sob o patrocínio de Flaubert, e sobretudo Boule de Suif, que apareceu no mesmo ano (1880), em Les Soirés de Médan, marcam o fim da aprendizagem. Maupassant é desde então o mestre de sua arte. O enorme sucesso de Boule de Suif lhe permitiu consagrar-se inteiramente ao mister literário, abrindo-lhe a porta de diferentes jornais, onde, durante anos, quase a cada semana, aparece uma crônica ou um conto de sua autoria, sem contar os romances publicados durante o mesmo espaço de tempo.

Maupassant vive então, ora em Paris, ora em Etretat, onde mandara construir um vilino, La Guillette. Mas tinha também a paixão das viagens. E, livre de abandonar-se a seus gostos, perde-se em longos cruzeiros a bordo de seu iate Bel-Ami. Por várias vezes vai até a Argélia; é encontrado na Córsega ou na Sicilia; apraz-lhe fazer longas escalas pelos diferentes portos da Côte d"Azur.

É por volta dos 36 anos que aparecem os primeiros sintomas da doença que o aniquilaria. Escreve menos, e Le Horla sugere que ele está sujeito a alarmantes desvios da imaginação. Começa então a tomar interesse pelos problemas religiosos e, por algum tempo, faz da Imitação o seu livro de bolso.

Mas doenças nervosas herdadas, além do excesso de exercícios físicos e o imprudente uso de drogas, acabam por abalar-lhe a forte constituição; sua misantropia se agrava e ele sofre alucinações. Atingido de paralisia geral, de que a mania das grandezas fôra um dos sintomas, ia ele passar o inverno de 1891 em Cannes, quando sua razão começa lentamente a sossobrar. Em janeiro de 1892 tenta suicidar-se e é removido para Paris, onde morre em penosas circunstâncias a 6 de julho de 1893.


A SALPÊTRIÈRE

(Extraido do "Livro de San Michele" de Axel Munthe, Edição da Livraria do Globo, edição 1947)

" Nunca deixava de assistir às famosas lições das terças-feiras do Professor Charcot, na Salpêtrière, então dedicadas à "grande história" e ao hipnotismo. O vasto anfiteatro regurgitava de um público multiforme que acorria de todo o país; escritores, jornalistas, atores e atrizes, semimundanas elegantes, todos espicaçados por uma curiosidade mórbida de presenciar os supreendentes fenêmenos do hipnotismo, quase esquecido, desde os dias de Mesmer e Braid.

Foi precisamente numa daquelas conferências que travei conhecimento com Guy de Maupassant, já então famoso pela sua Boule de Suif e a inolvidável Maison-Tellier. Falava sempre de hipnotismo e de toda a espécie de perturbações mentais, e não se cansava de questionar-me para conhecer o pouco que eu sabia dessas matérias. Procurava conhecer todos os pormenores a respeito de loucura, pois recolhia material para a sua terrível obra La Horla, quadro fiel do seu trágico futuro.

Uma vez acompanhou-me até Nancy para visitar a clínica do Professor Bernheim, o que me abriu os olhos sobre os erros da escola de Salpêtrière quanto ao hipnostismo. Também fui durante alguns dias hóspedes a bordo do seu iate. Recordo-me perfeitamente de uma noite inteira que passamos falando da morte no salãozinho do seu Bel-Ami ancorado no porto de Antibes. Maupassant temia a morte; disse-me que a idéia da morte quase nunca o abandonava. Queria saber as propriedades dos diferentes venenos, a sua rapidez de ação e relativa ausência de dor. Insistia particularmente sobre a morte no mar. Disse-me que supunha que a morte no mar, sem um salva-vidas, era relativamente fácil; mas, com ele devia ser a mais terrível de todas. Ainda me parece estar a vê-lo, contemplando com seus olhos profundos os salva-vidas colocados na porta e ouvir-lhe dizer que na manhã seguinte os deitaria à água. Perguntei-lhe se pensava em afogar-nos durante o nosso projetado cruzeiro à Córsega. Permaneceu um momento silencioso e por fim respondeu que não, que pensava morrer os braços de uma mulher. Respondi-lhe que tinha as maiores probabilidades, com a via que fazia, de conseguir o seu desejo.

Enquanto falava, Yvone despertou e, meio adormecida, pediu outra taça de champanhe, voltando a adormecer com a cabeça nos joelhos de Maupassant. Era uma bailarina de dezoito anos, acostumada às viciosas carícias dos velhos que freqüentam os bastidores da Ópera, e que ia a caminho de perder-se completamente a bordo do Bel-Ami, nos braços do seu terrível amante. Bem sabia que nenhum salva-vidas a poderia salvar; que a jovem o teria repelido, se alguém lho oferecesse; que, juntamente com o corpo, tinha dado o coração àquele insaciável macho que só pedia o corpo. Sabia qual seria seu destino, pois não era a primeira rapariga a quem vira adormecida com a cabeça nos joelhos do escritor.

Até onde ele era responsável pelos seus atos eis outro problema. O temor lhe acossava o cérebro, dia e noite atormentado transluzia-lhe nos olhos; e eu, já o considerava como um homem perdido. Sabia que o sutil veneno da sua Boule de Suif já começara a destruir aquele magnifico cérebro. Também ele o suspeitava? Assim me pareceu muitas vezes. Sobre a mesa que havia entre nós dois estava o original da sua obra Sur l'Eau, alguns capítulos da qual acabava de ler-me, e que eu reputava o melhor de tudo quanto havia escrito. Continuava produzindo com velocidade febril obras-primas, uma atrás das outras, estimulando o excitado cérebro com champanhe, éter, e toda a espécie de drogas. Mulheres, umas a seguir às outras, em interminável sucessão, precipitavam o colapso, mulheres recrutadas em todos os bairros, desde o Faubourg Saint-Germain, até aos bulevares, atrizes, bailarinas, midinettes, grisettes, rameiras vulgares. Os amigos chamavam-lhe "o touro triste". Mostrava-se desmedidamente orgulhoso dos seus êxitos; aludia a senhoras misteriosas da mais alta sociedade, introduzidas na sua casa da rua Clauzel pelo seu fiel criado François, - primeiro sintoma da sua próxima loucura das grandezas.

Subia às vezes a correr as escadas da Avenida de Villiers, sentava-se a um canto do meu gabinete, olhando-me em silêncio com aquela morbida fixidez de olhar que tão bem lhe conhecia. Permanecia com freqüência alguns minutos parado, a contemplar-se no espelho da chaminé, como se olhasse um estranho. Contou-me um dia que, enquanto sentado na sua cadeira escrevia uma nova obra, sentira uma viva surpresa ao ver entrar no gabinete um estranho, apesar da severa vigilância do criado. O intruso sentou-se na sua frente e começou a ditar-lhe o que ele ia escrever. Dispunha-se a chamar François, para o mandar pôr na rua quando viu com horror que o intruso era ele próprio.

Dois dias depois estava eu ao pé dele na Ópera, entre os bastidores, olhando Yvone, que bailava um pas-de-quatre sorrindo, às escondidas do amante, cujos olhos reluzentes nunca se apartavam dela. Ceamos tarde no elegante andar que ele acabava de alugar para Yvone. Quando ela tirou um pouco as cores do rosto, fiquei espantado ao ver como estava pálida e gasta, em comparação da primeira vez que a vi no iate. Disse-me que sempre tomava éter quando bailava; que não havia nada melhor do que éter como reconstituinte; todas as suas companheiras o tomavam e até o próprio Monsieur le Directeur du Corps de Ballet.


Com efeito vi-o morrer por isso mesmo anos depois na sua casa de Capri. Queixava-se Maupassant de que Yvone emagrecia muito e de noite não o deixava dormir com a sua tosse pertinaz. A seu pedido auscultei-a na manhã seguinte: mostrava graves sintomas no vértice de um pulmão. Disse a Maupassant que a jovem tinha que observar um repouso absoluto, e aconselhei-lhe a que a mandasse durante o inverno para Menton. Maupassant respondeu-me que faria com muito gosto quanto pudesse por ela. Aliás, não lhe agradavam as mulheres magras. A rapariga negou-se em absoluto a partir, preferindo morrer a deixá-lo. Deu-me muito que fazer durante o inverno, e trouxe-me muitos e novo doentes. Uma após outra, as suas companheiras começaram a aparecer pela minha casa da Avenida de Villiers para consultar-me às escondidas, com receio de que o médico titular da Ópera as pudesse deixar a meio soldo. Os bastidores do corpo de baile representavam para mim um mundo novo, não isento de perigo para um explorador inexperiente; porque, desgraçadamente, não era só no altar da deusa Terpsicore que aquelas jovens vestais depunham as grinaldas da sua mocidade. Felizmente a deusa daquelas pobres raparigas foi expulsa do meu Olimpo com os últimos e olvidados sons da Chaconne de Gluck e do Minuete de Mozart, o que restava não representava aos meus olhos mais do que simples acrobacia. O mesmo não acontecia com os habitués dos bastidores. Não cansava de assombrar-me da facilidade com que aqueles decrépitos tenórios perdiam o equilibrio próprio, contemplando aquelas raparigas seminuas, que mantinham o seu na ponta dos pés.

Yvone teve a primeira hemorragia e a doença progredia seriamente. Maupassant, como todos os escritores que descreviam a doença e a morte, odiava vê-las de perto. Yvone tomava duzias de frascos de óleo de fígado de bacalhau para engordar, pois sabia que o amante não gostava de mulheres magras. Tudo em vão. Em breve, da sua bela juventude, não restavam mais do que os olhos maravilhsos, incediados pela febre e o éter. A bolsa de Maupassant continuava aberta para ela, mas de pronto os braços apertaram o corpo de uma das suas companheiras. Yvone arrojou uma garrafa de vitríolo à face da rival. Por fortuna mal acertou, e escapou com dois meses de cadeia, graças à poderosa influência de Maupassant e a um atestado meu em que declarava que a rapariga tinha poucos meses de vida. Ao sair da prisão negou-se a voltar à casa onde vivera com Maupassant, apesar dos seu rogos. Desapareceu na imensidade desconhecida da vasta cidade como um animal condenado que se esconde para morrer.

Uma mês depois encontrei-a, por acaso, numa cama do hospital de Saint Lazare, última estação da Via Crucis das mulheres perdidas de Paris. Disse-lhe que o iria comunicar a Maupassant, o qual, estava certo, não tardaria em procurá-la. Nessa mesma tarde fui à casa do escritor. Não havia tempo a perder. Era fora de dúvida que à pobre não restavam muitos dias de vida. O fiel François mantinha-se no seu habitual posto de cérbero defendendo o amo contra os intrusos. Em vão tentei ser recebido; as ordens eram terminantes. Visita alguma, sob qualquer pretexto podia ser introduzida: era a costumada história da senhora misteriosa. Como único recurso fui obrigado a escrever um pequeno bilhete, referindo-lhe o caso, que François prometeu entregar. Nunca consegui saber se lhe chegou às mãos. Suponho que não, porque François procurava sempre afastar do amo as histórias molestas de mulheres. Quando um dia depois fui a Saint Lazare, Yvone estava morta. Disse-me a monja que tinha passado a manhã a pintar a cara, a pentear os cabelos, e pedira até a uma velha prostituta da cama ao lado que lhe emprestasse o seu xale de seda encarnada, último vestigio de um antigo esplendor, para esconder os ombros esquálidos. À monja dissera que esperava o seu senhor; inquieta, esperou durante todo o dia; mas este não foi. Na manhã seguinte encontraram-na morte no leito. Ingerira até a última gota a poção de cloral.

Dois meses depois vi Guy de Maupassant em Passy, no conhecido manicômio da Maison Blanche. Dava voltas pelo braço de seu fiel François atirando pedrinhas nos canteiros de flores, com o gesto do Semeador de Millet. - Olha, olha - dizia ele, - se vier chuva hão de nascer todas na primavera como pequenos Maupassants."

4 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Muito conceitual o blog, gostei bastante.

Páginas Soltas disse...

Muito obrigada pela visita!

e já agora por o felicitar pelo texto que escolheu...sobre a vida e obra de Henri-René-Albert-Guy de Manpassant.

Um escritor conhecido pela sua obra..mas a narrativa sobre a sua vida..é muito interessante...não a conhecia!

Obigada

Uma boa semana

Abraço da

Maria

Unknown disse...

Blog muito bom!
Nao conhecia a obra de Henri-René-Albert-Guy de Manpassant, que por sinal é muito interessante.


abraço!!

vanderleu disse...

meu amigo Fhilos, acho que vou ter de discordar de vc em um pequeno pormenor, na verdade não é um pormenor por se tratar de algo pessoal de cada um e vejo que talvez desconheça um pouco no que diz respeito aos cristãos, o natal a que se refere não é comemorado pelos cristãos e sim pela igreja católica, os cristãos como se referiu são os que não comemoram o natal, ademais o mitraismo na verdade foi também uma religião concorrente ao cistianismo assim como varias outras.